22 de maio de 2008

13 de maio de 2008

A arte do olhar

Assunto: Complicada arte de ver

Rubem Alves


Ela entrou, deitou-se no divã e disse: 'Acho que estou ficando louca'. Eu fiquei em silêncio aguardando que ela me revelasse os sinais da sua loucura. 'Um dos meus prazeres é cozinhar. Vou para a cozinha, corto as cebolas, os tomates, os pimentões - é uma alegria! Entretanto, faz uns dias, eu fui para a cozinha para fazer aquilo que já fizera centenas de vezes: cortar cebolas. Ato banal sem surpresas. Mas, cortada a cebola, eu olhei para ela e tive um susto. Percebi que nunca havia visto uma cebola. Aqueles anéis perfeitamente ajustados, a luz se refletindo neles: tive a impressão de estar vendo a rosácea de um vitral de catedral gótica. De repente, a cebola, de objeto a ser comido, se transformou em obra de arte para ser vista! E o pior é que o mesmo aconteceu quando cortei os tomates, os pimentões... Agora, tudo o que vejo me causa espanto.'
Ela se calou, esperando o meu diagnóstico. Eu me levantei, fui à estante de livros e de lá retirei as 'Odes Elementales', de Pablo Neruda. Procurei a 'Ode à Cebola' e lhe disse: 'Essa perturbação ocular que a acometeu é comum entre os poetas. Veja o que Neruda disse de uma cebola igual àquela que lhe causou assombro: 'Rosa de água com escamas de cristal'. Não, você não está louca. Você ganhou olhos de poeta... Os poetas ensinam a ver'.

Ver é muito complicado. Isso é estranho porque os olhos, de todos os órgãos dos sentidos, são os de mais fácil compreensão científica. A sua física é idêntica à física óptica de uma máquina fotográfica: o objeto do lado de fora aparece refletido do lado de dentro. Mas existe algo na visão que não pertence à física.

William Blake sabia disso e afirmou: 'A árvore que o sábio vê não é a mesma árvore que o tolo vê'. Sei disso por experiência própria. Quando vejo os ipês floridos, sinto-me como Moisés diante da sarça ardente: ali está uma epifania do sagrado. Mas uma mulher que vivia perto da minha casa decretou a morte de um ipê que florescia à frente de sua casa porque ele sujava o chão, dava muito trabalho para a sua vassoura. Seus olhos não viam a beleza. Só viam o lixo.

Adélia Prado disse: 'Deus de vez em quando me tira a poesia. Olho para uma pedra e vejo uma pedra'. Drummond viu uma pedra e não viu uma pedra. A pedra que ele viu virou poema.
Há muitas pessoas de visão perfeita que nada vêem.
'Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. Não basta abrir a janela para ver os campos e os rios', escreveu Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa. O ato de ver não é coisa natural. Precisa ser aprendido. Nietzsche sabia disso e afirmou que a primeira tarefa da educação é ensinar a ver. O zen-budismo concorda, e toda a sua espiritualidade é uma busca da experiência chamada 'satori', a abertura do 'terceiro olho'. Não sei se Cummings se inspirava no zen-budismo, mas o fato é que escreveu: 'Agora os ouvidos dos meus ouvidos acordaram e agora os olhos dos meus olhos se abriram'. Há um poema no Novo Testamento que relata a caminhada de dois discípulos na companhia de Jesus ressuscitado. Mas eles não o reconheciam. Reconheceram-no subitamente: ao partir do pão, 'seus olhos se abriram'. Vinicius de Moraes adota o mesmo mote em 'Operário em Construção': 'De forma que, certo dia, à mesa ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção, ao constatar assombrado que tudo naquela mesa - garrafa, prato, facão - era ele quem fazia. Ele, um humilde operário, um operário em construção'.
A diferença se encontra no lugar onde os olhos são guardados. Se os olhos estão na caixa de ferramentas, eles são apenas ferramentas que usamos por sua função prática. Com eles vemos objetos, sinais luminosos, nomes de ruas - e ajustamos a nossa ação. O ver se subordina ao fazer. Isso é necessário. Mas é muito pobre. Os olhos não gozam... Mas, quando os olhos estão na caixa dos brinquedos, eles se transformam em órgãos de prazer: brincam com o que vêem, olham pelo prazer de olhar, querem fazer amor com o mundo.

Os olhos que moram na caixa de ferramentas são os olhos dos adultos. Os olhos que moram na caixa dos brinquedos, das crianças. Para ter olhos brincalhões, é preciso ter as crianças por nossas mestras. Alberto Caeiro disse haver aprendido a arte de ver com um menininho, Jesus Cristo fugido do céu, tornado outra vez criança, eternamente: 'A mim, ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me todas as coisas que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas quando a gente as têm na mão e olha devagar para elas'.
Por isso - porque eu acho que a primeira função da educação é ensinar a ver - eu gostaria de sugerir que se criasse um novo tipo de professor, um professor que nada teria a ensinar, mas que se dedicaria a apontar os assombros que crescem nos desvãos da banalidade cotidiana. Como o Jesus menino do poema de Caeiro. Sua missão seria partejar 'olhos vagabundos'...

O texto acima foi extraído da seção 'Sinapse', jornal 'Folha de S.Paulo', versão on line, publicado em 26/10/2004
Texto enviado por Suely Cauduro

10 de março de 2008

Ser Pintor



Sou um pintor
De todas as coisas
Artista que vê
A porta e a cadeira
Que vê nas coisas macias uma falha
E vê nas coisas redondas um buraco
As cores para ele existem
Porém a forma íntima
Ele não conhece
Mas o mundo é colorido e forte
Com luz e sombra
E formas que se entrelaçam
E o céu para ele não é azul
Quando corre sobre os prados e as árvores
E o rio não é apenas entre as margens
Quando as cores se espalham sobre a terra

E para ele uma árvore não é uma árvore
Mas uma canção de beleza no céu

E as cores não são para ele apenas cores
Cada uma é um sonho numa fantasia
Que torna irreal este vosso mundo
Para ele
Para este homem pintor
......

Poema: Ivan Albrigh, pintor americano.
pintura: George Stenberg, pintor russo

6 de março de 2008

Em obras

O texto que a seção “em obras”, de Trópico, reproduz, “Sentenças sobre Arte Conceitual”, de 1969, traz a sentença que foi fundamental para Lucy Lippard no seu livro mais canônico, “Six Years: The Dematerialization of the Art Object From 1966 to 1972” (Londres, Studio Vista, 1973): "Nem todas as idéias precisam ser concretizadas".
1. Os artistas conceituais são místicos ao invés de racionalistas. eles chegam a conclusões que a lógica não pode alcançar.
2. Julgamentos racionais repetem julgamentos racionais.
3. Julgamentos ilógicos levam a novas experiências.
4. A Arte Formal é essencialmente racional.
5. Pensamentos irracionais devem ser seguidos de maneira absoluta e lógica.
6. Se o artista muda de idéia no meio do caminho, enquanto executa seu trabalho, ele compromete o resultado e repete resultados passados.
7. A vontade do artista é secundária ao processo que ele inicia, desde a idéia até sua concretização. Sua voluntariedade pode ser pura manifestação do ego.
8. Quando palavras como pintura e escultura são usadas, elas carregam toda uma tradição e implicam a consequente aceitação desta tradição colocando, assim, limitações ao artista que hesita em ir além dos limites anteriores.
9. Conceito e idéia são coisas diferentes. O primeiro implica uma direção geral enquanto o último são os componentes. As idéias implementam o conceito.
10. Idéias em si podem ser uma obra de arte; estão em uma cadeia de desenvolvimento e podem finalmente encontrar alguma forma. Nem todas as idéias precisam ser concretizadas.
11. As idéias não vêm necessariamente em uma sequência lógica. Podem partir em direções inesperadas, mas uma idéia deve necessariamente estar completa na cabeça antes que a próxima se forme.
12. Para cada obra de arte que se concretiza existem muitas variações não concretizadas.
13. Uma obra de arte pode ser entendida como uma ponte que liga a mente do artista à mente do espectador. Mas pode jamais alcançar o espectador ou jamais sair da mente do artista.
14. As palavras de um artista a outro podem induzir uma cadeia de idéias - se estes compartilham o mesmo conceito.
15. Dado que nenhuma forma é intrinsecamente superior à outra, o artista pode usar, igualmente, qualquer forma, desde uma expressão verbal (escrita ou falada) até a realidade física.
16. Se palavras são usadas e procedem de idéias sobre arte, estas são arte e não literatura; números não são matemática.
17. Todas as idéias são arte se se referem à arte e encaixam-se nas convenções da arte.
18. Geralmente entendemos a arte do passado aplicando as convenções do presente e, assim, entendemos mal a arte do passado.
19. As convenções da arte são alteradas por obras de arte.
20. A arte bem sucedida transforma nossa compreensão das convenções ao alterar nossas percepções.
21. Perceber idéias conduz a novas idéias.
22. O artista não é capaz de imaginar sua arte nem de percebê-la antes de estar completa.
23. Um artista pode perceber erroneamente uma obra de arte (entendendo-a diferentemente do autor), mas abandonará sua própria cadeia de pensamento através desta má compreensão.
24. A percepção é subjetiva.
25. O artista não precisa necessariamente entender sua própria arte. Sua percepção não é melhor nem pior que a dos demais.
26. Um artista pode perceber a arte de outrem melhor que a sua própria.
27. O conceito de obra de arte pode envolver o material da peça ou seu processo de realização.
28. Uma vez estabelecida a idéia da obra na mente do artista, e decidida sua forma final, o processo é levado a cabo às cegas. Existem muitos defeitos secundários que o artista não é capaz de imaginar. Estes podem ser utilizados como idéias para novos trabalhos.
29. O processo é algo mecânico e não deve ser outro. Ele deve seguir seu curso.
30. Existem muitos elementos envolvidos numa obra de arte. Os mais importantes são os mais óbvios.
31. Se um artista utilizasse a mesma forma em um grupo de obras, e alternasse o material, poderíamos supor que o conceito envolvia o material.
32. Idéias banais não podem ser redimidas através de uma bela execução.
33. É difícil estragar uma boa idéia.
34. Quando um artista aprende bem demais o seu ofício, ele produz uma arte esperta.
35. Essas frases são comentários sobre arte e não são arte.
Tradução de Silvia Bigi e Márion Strecker Gomes para a revista “Arte em São Paulo”, n. 15, maio de 1983
(Publicado em 9/4/2007)